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domingo, 8 de dezembro de 2013

Vaso

Quebra-se aqui o vaso dos nossos medos
que explodem disformes
que vêm todos de uma vez
sem pontuação sem pausa
sem dar tempo pra gente pensar
rápidas dão rasteiras deliciosas de se ver
a vaca deu seu leite a preguiça se pendurou
o gato deu seu pulo a mãe os passarinhos alimentou
e de que adiantou de que adiantou
o mundo permanece nesse mesmo caos
os bules continuam a guardar seus chás
no meio dessa desordem
pego o seu e o meu interior a murmurar palavras malucas
únicas
suas minhas nossas
palavras derivadas tão somente de nós próprios
e de que adianta de que adianta
ninguém ouve as palavras além de nós
e explodem novamente os medos
não deveriam
mas explodem pesados e degradantes do nosso maço de ideias
que são consumidas uma a uma
até que sem ar sem conseguir parar
acabam.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Fone

  -Alô.
  -Alô! Mãe? O que aconteceu?
  -Nada, minha filha.
  -Sério? Pode me contar! Você falou um "Alô" tão estranho...!
  -Minha filha, tô te dizendo, não é nada!
  -Ah, mãe! Agora vai mentir pra mim? Nunca fez isso! Nem quando aquele dia eu perguntei se era a fada do dente que tinha deixado a moeda debaixo do travesseiro! Nem quando eu perguntei se era o Papai Noel. Nem quando eu perguntei se era uma DST e você disse que não sabia, que achava que eu devia estar grávida, porque sempre tinha me achado uma putinha! Nem naquela hora que perguntei se estava bonita e você disse que eu estava perecendo uma rapariga gringa, que só elas que usam aqueles mini-shorts! Nem ali você mentiu!
  -Moça, deixe de ser tão neurótica! Não aconteceu nada.
  -Não, mãe. Não consigo. Quer saber? Você não vai me contar mesmo? Vou ligar pra papai. 
  -Estou te dizendo...
  -Basta! Desligando.

sábado, 16 de novembro de 2013

Angústia Alcóolica

Barzinho copo sujo.
Ambiente propício.
Há uma poça de cachaça no chão
Cachaça, cacos e angústia.

Angústia vomitada.
Expelida da paz parca e porca.
Da quietude pública.
Da amplitude privada.

Angústia minha e sua.
Suada, estirada, vulgar.
Pilhas de nervos imprestáveis.
Cadenas de ritmos intermináveis.

Angústia catalisada
Por álcool, álcool e amor.
Dilacerada lancinante.
Desacelerada pulsante.

Angústia horizontal.
Vista em cartesiano.
Que pôs cor na minha vida.
Que pôs corna a minha vida.

Barzinho copo sujo.
Ambiente prepúcio.
"Ô cumpadi! Desce mais uma que hoje eu esqueço!"
Copo. três dedos. Mão. Mão. Peso. Queda. Estilhaço.
Há uma poça de cachaça no chão!
Cachaça, cacos e angústia.

Manhã Dela


  "É a minha manhã" pensou ela. Tirara essa manhã fresca e raríssima para dedicar-se aos pequenos prazeres que tinha na vida. Nem levantou-se da cama, dali mesmo abriu as cortinas. Pegou o livro  de cabeceira, que mudava assim que era terminado, e leu mais três capítulos. Era bom. O momento era bom.
  Seu cobertor xadrez, como a maior parte de suas roupas - adorava quando uma cor sobrepunha-se a outra naquela trama quadriculada, extremamente variável - lhe dava uma sensação de segurança e conforto. indescritíveis. Morava sozinha, então forçou-se a levantar da cama e esquentar um pouco de leite na chama do fogão. Preferia o risco de, se se distraísse, ver todo o leite se derramando, pulando da leiterinha herdada de sua avó a esquentar o líquido no seu microondas e não sentir o cheirinho que ele soltava. Para ela tudo no microondas tinha um ar artificial.
  Com o leite quente, o cobertor xadrez e o delicioso clima, supreendeu-se ao ver que o livro simplesmente acabara. Pegou o próximo da fila, uma pilha de livros organizados de acordo o seu interesse e leu mais dois capítulos.
  Fechou-o com dedos delicados e olhou em volta no quarto.  A radiola ainda estava lá. Será que ainda funcionava?
  Cuiosa, ela saiu da cama e ligou o aparelho, tentando sintonizar qualquer rádio que fosse. Chiava, mas "Disprada" era uma música que a lembrava sua infância no interior, a casa na roça com sua avó a cortar verduras, a panela de pressão a apitar. Agora sua vida havia mudado radicalmente nessa cidade grande. Mesmo com a janela aberta, se recusava a ouvir o barulho dos carros, das buzinas, dos pneus lá fora. O único som que se permitia ouvir era a música chiada proveniente da radiola. Sorrindo, tirou um cochilo, desenhou uns rabiscos quaisquer no caderno, espreguiçou-se.
  E em nenhum momento daquela manhã passou pela sua cabeça que o mesmo clima frio que considerava bom poderia ser congelante e desagradável para outras pessoas. É difícil enxergar o sofrimento alheio quando se está feliz. 
  Mas ela não se culpava. Aquela manhã era dela. Depois de um ano tão cansativo, um mês tão dentro da rotina, uma semana tão sem perspectivas, aquela manhã era dela.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Um Parágrafo

  Me disseram que a vida ainda não sabe o que quer da gente. É por isso que eu não consigo realizar nada do que me proponho. A vida fica na frente, essa vagabunda.  Chamo-me Robsenvaldo e não gosto de colocação enclítica, apenas a escrevo assim porque me disseram que é o certo. Sempre faço as coisas porque me disseram que é certo. Mas, recordando agora, já fiz muita coisa que as pessoas me falaram pra não fazer. Só que eram coisas pequenininhas, nada tão contrário a tudo. Talvez um parcialmente contrário por exemplo pegar uma das ruas sem ser as indicadas. "Sua avó fazia colchas de casal com retalhos e cinco por cinco centímetros..." sussurra uma voz no meu cérebro. Eu sei que ela quer dizer que "Existe o efeito bola-de-neve-que-desce-o-morro." ou que, mais precisamente "De boas intenções o inferno está cheio."... Não suporto mais esse assunto, desculpem. Ah, o meu nome se pronuncia só Rosenvaldo...O "b" quem pôs foi o meu pai, por algum motivo que não faço ideia qual é. Imagino que seja algo como raiva de mamãe, porque eles tinham brigado assim que minha mãe acabara de me parir, pois ela insistia que ele me registrasse no cartório naquele exato momento e ele queria esperar pra ver ela dar o peito pra mim pela primeira vez. Dizem que as mães têm que estar tranquilas na primeira sugada do nenê, mas a minha não estava. Talvez por isso eu seja assim. Falando em "eu"... não espera, eu estava enumerando os motivos de meu pai ter me registrado com um "b" no meio do nome. Então... Um era raiva de mamãe e o outro motivo provável era uma raiva contida, tímida, que ele guardava desde o Ensino Infantil. Eu sei que caçoavam dele - o nome dele é Flantropício - então prefiro ignorar essa parte. Afinal... É só um "b"... Está ali enfeitando um pouco a palavra, rebuscando um pouco. Isso não te interessa, eu sei. Mas vou contar. Simplesmente porque preciso contar. Voltando a quando eu disse "Falando em 'eu'..." há, no máximo dois minutos (se tiver demorado mais que isso, me desculpe, meu amigo, mas você tem que aprender a ler mais rápido...), vamos continuar: Falando em eu, eu descobri que você está me lendo há tantas linhas e não sabe nada sobre realmente quem eu sou. Não sabe se sou negro, branco, alto, gordo, magro, baixo. Não sabe a cor dos meus olhos, cabelos, dentes e roupas. É isso mesmo. E aposto que já está me imaginando de alguma forma. Não interessa. Você sabe algo sobre mim sim - muita coisa, na verdade... Aposto que se ler com atenção vai perceber. E é isso que demora: Perceber. Quando você deixa passar... Não tem mais volta. Bom, não te interessa. Não tenho culpa de me chama Robsenvaldo, nome registrado por meu pai, por um motivo desconhecido. Sabe que sou neto de uma senhora que faz colchas de casal com retalhos e cinco por cinco centímetros. Sabe que eu sou complexado por não conseguir cumprir nada do que proponho. E assim seguimos. Já sabe muito sobre eu, Rosbenvaldo, pro meu gosto. Muito mesmo. Está na hora de trocar de máscara, com licença...

sábado, 28 de setembro de 2013

Reportagem Motivacional

-Então vamos ver se sou aprovado: "Martinho Gusmão é um famoso engenheiro, atualmente muito bem sucedido e feliz. O retorno financeiro é tão bom que dá para ele bancar uma das mais caras escolas de São Paulo..."
-Na verdade...
-Fique quieto, apenas escute. Continuando: "...numa das mais caras escolas de São Paulo. Martinho mora atualmente numa casa com o valor estimado de R$150mil, na área nobre da cidade. Mas nem sempre foi assim. Nasceu na minúscula cidade de Funil, lá no Sul da Bahia, onde as pessoas sofrem desumanamente com a seca..."
-Ei, Funil não é tão minúsculo assim! E nem tão seco!
O outro ignorou:
-"Numa viagem que a nossa equipe fez a Funil, constatou que a própria prefeitura da cidade era estimada num valor menor que 90% das casas de São Paulo capital. Vimos pessoas fracas e subnitridas, com a qualidade de saúde, higiene e educação extremamente precárias." - Nessa hora, vamos exibir uma reportagem com a repórter Vaneuza Raíba, ela foi a Funil...
-Funil não é tão miserável assim! Vocês devem ter ido apenas da parte pobre da cidade, não é possível.
-Já disse para apenas escutar, meu senhor. Enfim: "Martinho Gusmão estudou sozinho a vida toda..."
-Minha escola se chamava Colégio Alfredo Afrânio, meu caro...
-"E conseguiu ingressar na faculdade com muito suor. A faculdade que passou, no entanto era distante e sua família era paupérrima e não podia bancar sua viagem..."
-O Colégio Alfredo Afrânio era particular! Está certo que não éramos ricos e por isso não conseguiríamos tão fácil mas...
-"...pois mal conseguia sustentar a si própria."
-Já não disse que...
-"Então, corajosamente, Martinho Gusmão saiu da minúscula cidade de Funil, deixando pra trás um calor infernal, uma infância e uma história de vida, sem medo de enfrentar o futuro. Nenhum de seus parentes ou amigos o apoiou e por isso teve que vir de carona durante todo o percurso..."
-Tudo bem, caro repórter. Só vou dizer uma vez: esse aí não sou eu.
-Meu amigo Martinho, é bom você cooperar, ou essa matéria não irá ao ar nem hoje nem nunca.
-Pois sim! Se esta matéria era sobre mim está um tanto distorcida! Ninguém dessa produção sequer me perguntou se eu tive algum apoio!
-Se insiste... Você teve algum apoio para vir para São Paulo, caro Martinho?
-Claro! Todo mundo me apoiou por lá.
-Todo mundo?
-É!
-Até seu pai?
-Sim.
-Até sua mãe? Mães geralmente querem os filhos mais perto delas...
-Não, minha mãe foi muito liberal. Me apoiou muito.
-Ninguém deixou de te apoiar?
-Não.
-Aposto que tinha algum colega na escola que não te apoiou. Forçe sua memória...! Um rival, algum invejoso.
-Tinha o Carmo Carlos, ele era ignorante e nunca...
-Aaahh... Então haiva alguém sim! Continuando: "Nenhum de seus parentes ou amigos o apoiou e por isso teve que..."
-Mas era apenas o Carmo Carlos!
-O senhor disse que ele era ignorante e que nunca. Quando uma pessoa nunca, ela representa um forte percentual na história de alguém, sabia?
-Nunca o que?
-O senhor disse que o moço nunca. Não disse? Pois é. Eu te falei. É aproximadamente 100% de participação em qualquer história quando uma pessoa nunca. Compreende? Continuando: "Pelo seu esforço, Martinho Gusmão é um dos mais reconhecidos engenheiros do país."
-Olhe, perdi a paciência. Estou longe de ser um dos mais reconhecidos engenheiros do país! Retire meu nome disse e vá procurar outra pessoa para fazer essa entrevista.
Martinho se levantou, muito enraivecidamente e, tentando não ser grosso com ninguém, voltou pra casa.
E assim que ligou a televisão a reportagem sobre ele estava acabando de passar. Uma frase dele, falada por ele, gravada, porém há mais de uma semana, encerrava a notícia: "Minha história foi difícil. É por isso que recomendo a todos que se esforçem muito na vida!"
Estranho terem que mudar toda a história dele para fazer alguém se sentir motivado na vida...
(...)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Porque o mundo parou

  Todos estavam para lá de bêbados quando decidiram se levantar.
  Assim que o primeiro deles fez isso, se arrependeu. A tontura tomou conta dele como o amor tomou conta de Romeu ao ver sua amada pela primeira vez, tomou conta dele como a disenteria toma conta de alguém com o estômago fraco que come salgadinhos demais na festinha de um ano de seu sobrinho. O infeliz aventureiro, que tentara de todas as formas permanecer em pé, gritou, inconsequentemente:
  –Eita! Alguém pare o mundo!
  Um dos seus amigos riu, outro tentou se levantar para esmurrá-lo à toa, outro fez um gesto obsceno que ele fazia quando viam qualquer fêmea de mamífero bonita, mas outro realmente tentou parar a rotação da Terra; cravou seus dedos no chão da praça em que estavam e começou a fazer força para o lado que imaginava ser o lado contrário à rotação. Gemeu, fez força e nada. O que estava em pé já caíra novamente e tentou ajudá-lo, se juntando a ele para puxar a Terra.
  Um dos amigos – o do gesto obsceno – disse, consultando seu celular:
  –Seus idiotas! O que faz vocês acreditarem que a Terra está girando para esse lado? Tenho um aplicativo de bússola no celular, puxem exatamente para o lado oposto; pro Leste!
  –Claro que não babaca! A Terra gira da esquerda pra direita, ou seja, de Oeste pra Leste! Temos que puxá-la pro Oeste para fazer ela parar!
  –Ah, então é pro lado de lá! – disse e apontou. Nesse momento, o que tinha pedido para pararem a Terra já tinha se cansado e disse:
  –Já estou melhor, caras, não precisa mais parar o mundo...
  –Cale a boca.
  –Tá...
  –Mas venha nos ajudar!
  Os três juntos puxaram a terra pro Oeste. Puxaram e gemeram, bufaram e sujaram os dedos. Os outros dois se juntaram.
  Os cinco juntos puxaram a terra pro Oeste. Depois desistiram e começaram a gargalhar.
  Rolaram de rir até que, inesperadamente voaram. Foram jogados para o Leste a uma velocidade de mais de 1500km/h e não viram a hora que morreram.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Cacos

Fabulosa vidraça que quebrou,
Quando houver boas ideias, que me envie!
Que mande em mim mesmo!

Angústia de cacos. 
Vidrinhos nos olhos da criatura da bocarra.
Gosma. 
Gigante.
Pressurizada.
Úmida.
Seca.
Cacos de ideias se espalham pelo chão.

Não há mais maneira de catar.
Já estão do tamanho de hemácias.
Do meu sangue, que escorreu
Que esguichou
Que jorrou.

Angústia nova. 
São ambas angústias diurnas, sãs. 
Angústias que só existem devido à pressão, à robotização humana, jamais contida.

Onde jamais,
Jamais.

Haverá descanso.

domingo, 28 de julho de 2013

O Caminho Ascendente de Flores

  Seguia. Eu estava bem comigo mesmo. Acho que era efeito de minhas incontáveis noites mal dormidas. Não sei mais. Eu só sabia que estava bem. O lugar... ele não importa. É personagem secundário nessa trama. Nunca me importei muito com isso mesmo. Só sei que estava bem cheiroso. Eu sentia um perfume tão singular que não se podia comparar com coisas que eu conheço. Um perfume que humano nenhum consegue comparar com coisas que conhece. 
  Algo que importa, é que eu voava. Absurdamente, eu via o chão passando sob os meus pés sem encostá-los no chão. Acho que poucos dos humanos já tiveram a sensação de voar e os que tiveram não conseguem imaginar a diferença de voar em modelos aerodinâmicos com a de voar do jeito que eu estava. Eu praticamente sentia asas saindo das minhas costas e trabalhando num alto metabolismo para me fazer levitar. 
  Qual não foi o meu espanto ao ver um enxame de abelhas ao meu redor. Eram tantas, e, por alguma razão, eu conseguia distinguir cada uma, cada ser. 
  E algo mais de estranho... o que era? Eu tentava me lembrar e não conseguia. Veio então a ideia forte na minha cabeça: Eram todos machos, como eu!
  Foi então que finalmente percebi que de alguma forma eu estava transfigurado em abelha. Eu era abelha, uma abelha operário a coletar o pólen das belas flores. Então era esse o cheiro que eu senti naquele momento.. cheiro do pólen! Ah...! Como é bom...
  Não consegui mais pensar. Um hibisco maravilhosamente grande estava à minha frente e eu fui até o estame. O pólen... Ah! É algo indescritível.
  Se meu relato vai ficar menos crível eu não sei, mas, de alguma forma, puxei assunto com uma abelha operária ao meu lado. Posso dizer que as abelhas se comunicam de alguma forma, apesar de mesmo eu tendo sido abelha, não conseguir dizer exatamente qual.
  Ele não me disse seu nome, as coisas entre as abelhas não funcionam bem assim. Mas comentou sobre o maior mito das abelhas: O Caminho ascendente de Flores. Disse que era uma infinidade tão grande de rosas que jamais precisaríamos trabalhar novamente.
  Depois de dias, um rumor começou a correr pela colmeia: Alguém vira o Caminho.
  Todos nos alvoroçamos. Ao querer saber mais sobre o rumor, descobrimos que o Caminho Ascendente estava no lugar por nós mais temido: a Cidade.
  Mas todas as operárias gostariam de virar lenda chegando ao Caminho Ascendente de Flores.
  Partimos. Todas as operárias decidiram ir em grupo.
  Era quente. Difícil voar. Caótico. Complicado. Poluído. Foram morrendo, uma a uma. E eu, mesmo quase não mais conseguindo controlar as minhas asas, continuava a voar.
  Então vi.
  Uma infinidade imensa de botões de rosa, que subia até o infinito.
  Ao olhar para os lados, percebi que era a única abelha que sobrevivera, e nem era tão abelha assim. Talvez fosse abelhudo quando humano, mas isso não vem ao caso; o pensamento já se esvaíra. Não conseguia pensar em absolutamente mais nada. Era como a sensação com o hibisco milhões de vezes aumentada. Cada unidade desse milhão era uma flor. Subi. Coletei o pólen de uma e recuperei as energias. Subi mais. As asas ajudavam. Subi mais alto do que um arranha céus. Então vi que minhas asas não me respondiam mais.
  Eu não conseguia voar mais.
  Então caí como abelha toda a quilometragem que havia subido, que parecia agora ainda maior.
  O ar cortava e doía. Arrancou minhas asas. Me queimou.
  O chão me abraçou.
  Ao morrer como abelha, renasci humano.
  Meu corpo infantil continuava o mesmo.
  Minhas pequenas mãos com os dedos roídos, meus joelhos ralados, meus braços magricelas, meus pés descalços, meu calção e minha regata listrada, tudo por algum motivo enlameado. Minha tia saiu da cozinha com seu rolo gesticulando para que eu voltasse, o bolo de cenoura que eu tanto gostava estava pronto. Tia Nastácia não era tia de fato, mas cozinhava tão bem que eu a chamava assim. Vovó Benta estava lá dentro e minha prima caipira em algum lugar perto daquele riacho brincando com sua ridícula boneca de pano recheada de marcela.
  Agradeci pela chance de ter sido abelha. E fui andando para comer o bolo de cenoura, que nunca se compararia ao pólen. Ao olhar para trás vi a imensa roseira que vovó cuidava com tanto esmero e sorri. Eu tinha certeza que agora era uma lenda entre as abelhas.

(...)

sábado, 13 de julho de 2013

Túmulo Subaquático


De cara com a morte, rio e penso na ironia de tudo aquilo; o tal Narciso, quem me emprestou o nome, também morreu. Ficou de cara com a morte, no caso do conto mitológico, a cara da morte sento a própria cara refletida na lagoa. Morreu também por gostar demais de si mesmo. Como eu.
Parecia improvável que eu seguisse a trilha do nome que me apelidaram. Ele deve ter pensado nisso quando me disse o meu nome. Com certeza. Seu Noé sabia de tudo. Pensei que ele tivesse me apelidado disso para tornar o meu problema óbvio para mim mesmo e eu mesmo tentar consertá-lo, não para lançar-me essa maldição.
Mas agora já estou aqui. A morte, transfigurada nessa onda gigante já está aqui. O que fazer? Rio-me novamente, um riso frouxo, descontrolado, louco, histérico.
E o que ficava da minha existência? Nada.
Das três coisas que, segundo a cultura popular todo homem deve fazer, não fiz nada. Não tive filhos, não escrevi um livro, e o que escrevi ninguém jamais lerá, visto que meus únicos escritos estão no velho notebook, que, se já não pifou, logo será engolido pelo mar.
Rememoro os momentos que vivi. Os amigos e, posteriormente, paixões que tive. Todos pareciam tão eternos...
Retiro o último cigarro do bolso e mesmo sob essa tempestade, tento acendê-lo, quase inconscientemente. Depois tenho a mesma crise de gargalhadas histéricas.
Minha mente divaga e eu penso que devo estar parecendo um velho pirata, exceto, talvez, pela parte que o rum na mão do pirata é cachaça na minha e o barco pirata é barquinho a vela vagabundo alugado no porto tosco com um velho que realmente parecia um pirata.
Delírio ou verdade, vejo uma luz. Um holofote apontado diretamente para minha cara. Que ótimo – penso, sarcasticamente – a salvação.
Fato é que eu não quero ser salvo. Não vivi nada que valesse a pena ser lembrado. Felizmente, a onda já está grande o suficiente para ser perigosa a aproximação do helicóptero.
-Que se quebre sobre mim, que acabe logo com minha infame existência, ó onda. – digo.
Ergo um brinde, um último ato descompensado.
-VENHA! – grito. A onda dá a impressão de estar parada, escrotizando ainda mais a minha existência, logo no final dela – NÃO ME OUVIU? VENHA DE UMA VEZ! – berro.
E ela vem. Com força. Ávida. Cruel.
Descendo pro meu túmulo molhado e solitário, não abro mão de pensar: “Acho que viver valeu. De alguma forma, acho que valeu a pena”.
E fecho meus olhos para nunca mais.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O Rei

  Num entardecer hilariante com os últimos cacos de céu se tingindo de rosa, acontecia uma festa. Cada indivíduo se embebedava de óleo diesel e fumava farinha ao som doce do coral de flores. Era normal. Era legal. Todos faziam. 
  Era um cenário deplorável, visto que todos na festa se encontravam em tal ângulo de alteração psicológica que mesmo com toda a bela música floral para ouvir, o ambiente não deixava de exalar cheiro de ressaca e arrependimento. Corpos tortos e ternos desalinhados traziam os piores sentimentos à superfície; inveja, ódio, vontade de falar errado e amor deixavam tudo inebriante. Nesse cenário, um rei se apresenta. “Sou o rei” dizia.
  Ninguém acreditou.                       
  Ninguém se importou.
  E o tédio assolou aquele lugar.
  Depois disso, o rei se irritou e foi-se embora. E o povo continuou a beber óleo diesel e fumar farinha, como era antes.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Quanto à família

  O que é a família? Já começo a questionar, desde que ouvi o termo "família tradicional". Me pergunto se a família que conta é aquele conjunto de pessoas com quem você convive, se é aquela família que compartilha o mesmo sangue, se é aquela formada pelas pessoas que você ama. Me pergunto se um animal pode ser considerado família, se um irmão de sangue pode não ser. Porque, se "família tradicional" se refere a um modelo básico (pai, mãe e filhos apenas), ela não inclui mutas famílias atuais. 
  Na iminência de perder o meu cão, um ser que tem um amor incondicional por mim, vejo finalmente o quanto também eu o amo. Ao observar o conviver de alguns amigos numa república universitária, percebo que aquilo pode, sim, ser considerada uma família. Toda a discussão sobre homossexuais e adoção de crianças por eles também deve ser citada. Assim, cai ao chão toda o conceito de "família tradicional". 
  O aspecto familiar é estritamente cultural. É algo criando pelo homem, de forma nenhuma é natural. Animais não constituem família. Existem famílias poligâmicas no oriente aceitas pela cultura local,  coisa que, para nós do ocidente é abominável. Vemos que o homem criou toda uma rede intricada de relações familiares, algo que consideramos que é da nossa natureza, mas não é. É por isso que qualquer forma de amor é válida. É por isso que família não é quem é do seu sangue e sim quem você ama, quem está ali por você nos momentos difíceis. É aquela pessoa em quem você deposita a sua confiança sem receio.
  É claro que a chamada família tradicional não deve ser subestimada, desde que os valores pregados por ela não sejam absurdos, não sejam prejudiciais a ninguém. As pessoas têm que abrir a cabeça para novas opções. Uma sociedade de jovens de mente aberta leva a um futuro melhor para todos. 
  Acredito que a família que deve ser considerada é a formada por quem se ama. Um amigo de quem você tem saudade. Um animal de estimação com uma relação de amor. Um familiar que compartilha do seu sangue em quem você confia. E que venha um bom futuro para todo mundo. Um futuro onde qualquer um pode ser feliz.

(...)

sábado, 4 de maio de 2013

Saia

  -Saia.
  -O quê?
  -Saia!
  -Porquê?
  -Saia!
  -O que fiz que te deixou tão raivoso?
  -Nada! Saia!
  -Tá, tudo bem, já estou saindo.
  -Não saia! Tô dizendo para você usar saia, meu bem!
  -Você é louco? Tá dizendo isso para que?
  -Você é louca? Foi você quem me perguntou se eu preferia que você usasse calça ou saia longa.
  -E você prefere saia?
  -Sim!
  -Mas saia... Saia longa é algo velho.
  -Saia longa é algo lindo!
  -Não é isso. Ah... Saia longa... me lembra a minha avó!
  -E qual é o problema?
  -Não importa; Não vou falar da minha avó para você
  -Por quê?
  -Porque não.
  -Tudo bem. Mas use a saia.
  -Saia é coisa velha.
  -Saia é coisa atual.
  -Saia é coisa! Não visto coisa!
  -Calça também é coisa!
  -Mas saia é mais coisa que calça!
  -Toda roupa é coisa, minha maluca. Saia sem vestir nada, então.
  -O quê?! Como você pode falar algo assim?
  -Com a boca.
  -Ah, quer saber? Saia.
  -O quê?
  -Saia!
  -Porquê?
  -Saia!
  -O que fiz que te deixou tão raivosa?
  -Nada! Saia!
  -Tá, tudo bem, já estou saindo.
  -Não saia! É tanta ignorância da sua parte.
  -Ignorante é você.
  -Vamos parar por aqui. Eu uso a saia.
  -Viu, como era mais simples?
  -Vai continuar?
  -Não. Te amo demais pra ficar brigando.
  -Também te amo.
  -É bom saber disso.
  -É...
  -A gente devia falar que se ama mais vezes.
  -É...
  -O que foi agora...?
  -Não quero usar saia...
  -Use...!
  -Saia é coisa velha!
  -Ah... Vamos começar de novo...?

(...)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Urgência

  Urgência. Precisa ser agora.
  Nessa maldita república nenhum deles me respeita. Talvez por eu ser a única mulher. Talvez por nenhum deles ser nem um pouco organizado. Mas fazer o que? Nem me lembro exatamente como, mas sei que vim parar aqui, morando com essas pestes. 
  Tento desviar o pensamento pra outra coisa. Já que estamos sentados aqui na sala no sofá velho, decido contar quantos estão aqui. Um, dois, três... Cadê o quarto? Sabia. Sumiu. Deve estar lá, no cômodo que mais preciso no momento.
  E foi só meu pensamento voltar ao tal cômodo que a urgência voltou, com a mesma força, ou até mais forte. Só pensava numa coisa: "Banheiro."
  E agora, o que eu faria? Só havia um.
 O maior problema nem era apenas os garotos ali, ou o outro cantando Raul desafinadamente ali no banheiro. Mas Raul é desafinado mesmo, né...?
  Estou perdendo o foco, não estou contando a história de como acho Raul Seixas desafinado. Estou contando a história da situação vergonhosa pela qual estou passando, a tal história da vontade de ir ao... A urgência voltou. Que ódio. Mas tem visita na sala também; a namoradinha irritantemente patricinha de um deles. Daquelas garotas que acham nojento comer um sanduíche com as mãos.
  Vou segurar. Estou segurando. O outro ali no banheiro não para de cantar. Tento me concentrar na música: "Controlando a minha maluquez..." pronto. Não dá mais pra segurar. Me levanto, atraindo o olhar de todos. E agora? O que fazer? Pra onde ir? Me sento de novo. Todos começam a rir. Devem estar achando bem engraçado mesmo. Esses egoístas. Não sabem o que estou passando.
  De repente me lembro: no apartamento, temos uma pequena varanda, onde temos um pequeno vasinho com uma pequena planta. Se eu... Não isso não ia dar certo; a varanda é visível de todos os pontos da rua.
  Mas... Urgência. Banheiro. Se eu fosse homem, não iria ser tão ruim, poderia me aliviar na pia da cozinha. 
  A pia da cozinha... Não, também não ia dar certo; a cozinha era aberta, conjugada com a sala.
 Mas... Urgência. Banheiro. Num momento de desespero, decidi que era melhor a cozinha do que a varanda. 
  Me levantei gritando e apontei pra varanda: "Vocês viram aquilo?" gritei. Todos olharam curiosos. Ia dar certo. Continuei minha encenação desesperada e pouco convincente: "Alguém passou por ali! Alguém pulou do andar de cima!" - foi o melhor que consegui pensar. Todos se levantaram e foram conferir. Até a tal namoradinha. Quando um deles virou para trás e me perguntou se eu tinha mesmo visto, acenei freneticamente com a cabeça e convenci a todos que era melhor descer e conferir se o corpo não caíra num ponto que não era visível da varanda. Eles concordaram. A tal namoradinha disse que ia ficar para ligar para os bombeiros. Eu disse, irritada: "Vá você também! Você faz medicina ou não?!" 
  Ela saiu chorando e desceu as escadas com os meninos. Sabia que eles não iriam encontrar nada, mas preferia ser chamada de louca a continuar naquele sofrimento. 
  A pia! Nunca estive tão feliz por estar só. O único meio que encontrei foi subir e apoiar meus pés na pedra da pia. E se quebrasse? Ah, tarde demais. Já estava... ah... me aliviando. Feliz, desci de lá e liguei a torneira para que a água corrente limpasse tudo. Era sim um pouco nojento, mas valeu a pena.
  Sorrindo, me virei. 
  O tal cantor do banheiro estava parado, enrolado na toalha. Estava gargalhando, aquele filho de uma mãe. "Por que você não saiu antes?!" berrei. Ele apenas continuou a rir.
  
(...)

segunda-feira, 18 de março de 2013

Óculos

  Ana é bela, mas acho que não é a essa conclusão que ela chega toda vez que contempla tristemente o próprio reflexo no espelho do guarda-roupas. Contempla, desanima-se e tira-me do rosto. Coloca-me de lado e pega a câmera fotográfica, esquecendo-se de mim por um tempo, até me usar novamente para postar todas as novas fotos online.
  Ela nunca foi extrovertida com os amigos; é quieta, uma boa pessoa - ao menos pessoalmente. As coisas que a vejo fazer quando senta-se ao computador não são coisas que uma boa pessoa faria. É como se ela usasse uma máscara que é retirada toda vez que Ana deixa de ser pessoa física para se tornar pessoa virtual.
  Hoje Ana saiu sem mim. - Isso pode ser perigoso para alguém com tantos - e tão sérios - problemas de  vista. Agora me lembro de uma conversa no chat com um tal de Patrick. Ele me pareceu bem galanteador, acho que a ela também.
  Ouço a chave do apartamento girar e Ana entra chorando e se joga na cama, esmurrando o pobre travesseiro. Não sei o que aconteceu lá fora,mas gostei de vê-la escrever - mesmo com todas as inexplicáveis abreviações - para o tal de Patrick: "Vc n presta. Nunca mais me procure d novo."


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sexta-feira, 1 de março de 2013

A Rachadura no Teto

  Fiquei louco. Estou na minha cama, olhando uma rachadura no teto, e fiquei louco.
  Não por causa da rachadura no teto, isso não.Quem se importaria com uma rachadura no teto? Tudo bem que ela era profunda e comprida, mas quem ficaria assim por causa de uma rachadura no teto?
  Então... O que foi? Foi um livro que li? Um filme que vi? Uma música que ouvi? Não... Não me lembro de ter contato com algo tão polêmico assim a ponto de me deixar louco.
  Então... foi o fim de um relacionamento? Acho que não, nunca namorei.
  Não sei o motivo, mas fiquei louco. 
  A rachadura está crescendo, crescendo... Agora saem baratas e abelhas dela. Estou com medo. me escondo debaixo de minha coberta. permaneço lá até parar de ouvir as abelhas. 
  Ainda me incomodo com o motivo de ter ficado louco. Será que foi um pesadelo que tive? Nem sei se já acordei ou continuo dormindo. Acho que estou acordado, porque meu quarto continua o mesmo... Agora acho que estou dormindo, porque minha mãe me chamou e eu não moro com ela.
  Já sei quem me deixou louco: Ela. Ela se chama tecnologia e é muito ruim comigo. 
  Ouço um sussurro. Mas estou dormido ainda, como posso ouvir algo? Pode ser só o vento. Agora não sei. Sei que estou louco. E com medo. Me escondo sob a coberta novamente. O sussurro continua e acho que ele está dentro da minha cabeça. Só pode. Ele me diz, com sua voz sussurrada: "Nãããão... Você não está loooooouuuco..."
  Comecei então a realmente considerar essa possibilidade. Talvez não estivesse de fato louco. Perguntei de forma sussurrada ao sussurro: "Como você saaaaabe...?" "Eu simplesmente seeeei... Você não está loooooouuuco...", ele me respondeu.
  Me levanto da cama, ansioso. Aquele sussurro não era a voz de ninguém. Ou a voz de Deus, talvez. Ou a voz da loucura. Ouvi dizer que a loucura tem uma voz que repete as coisas para as pessoas loucas iguais a mim.
  O quarto começou a se mexer. Pode ser que minha loucura é apenas ressaca. Mas não bebi ontem! Como isso pode ser?  
  As baratas e abelhas voltaram à ativa. Gritam que eu corra. corri. Quando dei por mim tinha corrido demais, estava na cobertura do meu prédio. "Você não está loooooouuuco..." sussurrou-me a voz da loucura. As baratas e abelhas me seguiram até lá. Elas me disseram: "Voe! Nós conseguimos voar, porque você também não conseguiria?"
 "Não tenho asas!" respondi a elas. "Quem disse que só asas nos fazem voar? Você não está loooooouuuco... Não lembra-se dos desenhos animados, que os personagens voavam com um guarda-chuva? Você não está loooooouuuco..." foi a voz da loucura dessa vez. "Pule! Assim você voará!" disseram-me as baratas e abelhas, entregando-me um guarda-chuva.
  Elas tinham razão. 
 Durante a queda refleti que talvez nem vivo eu estivesse mais! Morto! Isso sim justificaria! Morto. Louco. Um louco que morreu. Ou um morto que enlouqueceu.

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domingo, 20 de janeiro de 2013

A Revolução das Traças

   A Traças S/A estava de pernas pro ar.
  A pobre Secretária viu tudo começar. De uma hora para a outra, todos os operários começaram a gritar e a bagunçar o andamento das produções.
  A companhia já era antiga e o Novo Chefe era experiente. Tinha ganhado a empresa de herança do Chefe Antigo, mas não a administrava do mesmo jeito.
  A Traças S/A, nas mãos do Chefe Antigo nunca tinha ido para frente, mas era um bom lugar para se trabalhar. Já o Novo Chefe administrava a empresa com mãos de ferro; em um ano administrando, a empresa já tinha se tornado exemplo em exportação de Folhas em toda a Biblioteca e faturava milhões.
  Milhões esses que os operários não viam nem de longe. Trabalhavam 20 horas por dia, num árduo e duro trabalho, para receber apenas 5% do que produziam. Nunca ninguém vira o chefe exceto a Secretária, pois ele achava que ninguém era suficientemente bom.
  -Novo Chefe! Eles estão fazendo uma revolução! - gritou a Secretária depois de refletir tudo isso, entrando afobadamente na sala do Novo Chefe. Pegou-o desprevenido, roendo a Última Folha. Ela, indignada, saiu. A Última Folha do Livro seria para quem fosse o melhor funcionário do mês. Ela sempre ganhava a Última Folha do Livro.
  Saiu, batendo os pés indignada. Não era à toa que aqueles operários todos estavam fazendo tamanha rebelião. O Novo Chefe era horrível.
  Porém, por outro lado, ninguém era inteligente o suficiente para conseguir comandar uma revolução tão grande. Ela própria, a Secretária, tinha ajudado o Novo Chefe nos testes de Q.I. e só tinha permanecido como operário quem tinha Q.I. abaixo de 60, os mais burros. Justamente para evitar uma situação como essa.
  Não tinha andado grande distância, quando o Novo Chefe saiu esbaforido da sua sala. Seu olhar parou nos operários revoltados como se nunca os tivesse visto antes. Quando seu olhar pousou na Secretária, a primeira coisa que disse foi:
  -Ligue para a Tropa de Elite das Forças das Traças. - o nome era bonito, mas todos da TEFT eram traças grandes e horrivelmente pretas, facilmente subornadas.
  Tudo estava uma grande confusão. Todos os operários gritavam e gritavam. Daquele jeito até os Humanos iriam ouvir. E se os Humanos ouvissem... as coisas ficariam feias.
  A vida de uma traça já era complicada de natureza. Tinham que se esconder dentro dos livros por toda a vida, e se os humanos encontrassem alguma... bem, ela não teria que se esconder mais.
  Ligou para o TEFT rapidamente e a Tropa já estava a caminho.
  A situação estava fora de controle. Ela e o Novo Chefe, de quem tinha um nojo incontrolável neste momento, se esconderam dentro do quartinho, para conseguirem sobreviver.
  O comércio de Folhas era algo novo, inventado há pouco tempo, mas era algo que toda a Sociedade das Traças necessitava, já que agora era proibido retirar folhas como forma de subsistência. Mas não era um produto renovável e a ganância do Novo Chefe era grande demais. Logo logo eles passariam por graves crises.
  O TEFT chegou, tentando a todo custo controlar a Revolução. Foi então que viram o líder.
 Era uma traça estrangeira, trazida de outra Biblioteca em algum livro. Ela subiu num palanque improvisado e gritou:
  -Não desanimem, Operários! Esse pessoal do TEFT não é capaz de nos deter! Se soubessem o nosso motivo, todos eles passariam para o nosso lado, com toda a certeza!
  Ao ouvir aquilo, todos os soldados do TEFT que ali estavam pararam. A Secretária gelou. Sem eles, só ela e o maldito Novo Chefe estavam mortos. O líder continuou a falar:
  -Nós só queremos acabar com o comércio de Folhas! Isso não deveria existir! Se tudo voltasse a ser como antes, todos poderiam viver em paz, cada família no seu Livro!
  O Novo Chefe estava babando de raiva ao lado da Secretária. Mordeu um grande pedaço da Folha ao seu lado e, mastigando rapidamente, preparou aquilo pelo qual era realmente temido; o Tiro de Pó. O líder continuou a falar:
  -Queremos paz, queremos um lar! - visivelmente, os oficiais do TEFT estavam já do lado dos Operários. O líder puxou um coro - Abaixo ao comércio! Abaixo ao comércio! Abaixo ao comércio!
  Todos logo estavam gritando. Daquele jeito, os humanos ouviriam, com toda a certeza.
  -ABAIXO AO COMÉRCIO! ABAIXO AO COMÉRCIO! ABAIXO AO COMÉRCIO!
  E, de repente, tudo havia parado. O líder já tinha sido atingido pelo Tiro de Pó do Novo Chefe e jazia morto.
  Virou tudo um pandemônio quando os oficiais do TEFT começaram a atirar Tiros de Pó para todo lado, mais fracos que os do Novo Chefe, mas matavam mesmo assim.
  E o pior aconteceu.
  Um humano ouviu tudo e abriu o livro.
  Ele começou a sacudir tudo e todos caíram, muitos morrendo já durante a queda. No chão estavam desprotegidos e foi, literalmente, um salve-se quem puder.
  E assim acabou a Revolução das Traças. Quem sobreviveu para contar a história, fez da Biblioteca um lugar pacífico, onde todas as famílias tinham um Livro inteiro só para elas, uma Biblioteca sem o comércio de Folhas. 

sábado, 5 de janeiro de 2013

Mão Única

Quem inventou o amor?
Quem inventou a dúvida?
Não quero mais. Placebo, não quero mais.
Cápsulas, não quero mais.
Remédio, não quero.
Som oco que bateu bem aqui.
Pois está vazio. Simplesmente vazio. 
Tanta pontuação, tanta grafia.
Tanta preocupação com os outros, meu Deus!

Se o palco é livre, se posso, então...! Mas...
Não, não posso. O palco não é assim tão livre se há a plateia logo ali.
E tomo cuidado para não resvalar na ponte bamba
pra não respingar a gasolina no mundo.
Que o vento vai levar, isso é certeza.
Glândulas calmas, revoltas como o mar
que bate e leva.
Não é calmo nem revolto. 
Essa porcaria! Que chupem-se!
Lágrima contida bamboleia no limite entre a íris e o mundo
mostrando mágoas desmedidas.
Mágoas que eu mesmo me proporcionei
no dia em que não mais aceitei ficar à margem.