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quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Fone

  -Alô.
  -Alô! Mãe? O que aconteceu?
  -Nada, minha filha.
  -Sério? Pode me contar! Você falou um "Alô" tão estranho...!
  -Minha filha, tô te dizendo, não é nada!
  -Ah, mãe! Agora vai mentir pra mim? Nunca fez isso! Nem quando aquele dia eu perguntei se era a fada do dente que tinha deixado a moeda debaixo do travesseiro! Nem quando eu perguntei se era o Papai Noel. Nem quando eu perguntei se era uma DST e você disse que não sabia, que achava que eu devia estar grávida, porque sempre tinha me achado uma putinha! Nem naquela hora que perguntei se estava bonita e você disse que eu estava perecendo uma rapariga gringa, que só elas que usam aqueles mini-shorts! Nem ali você mentiu!
  -Moça, deixe de ser tão neurótica! Não aconteceu nada.
  -Não, mãe. Não consigo. Quer saber? Você não vai me contar mesmo? Vou ligar pra papai. 
  -Estou te dizendo...
  -Basta! Desligando.

sábado, 16 de novembro de 2013

Angústia Alcóolica

Barzinho copo sujo.
Ambiente propício.
Há uma poça de cachaça no chão
Cachaça, cacos e angústia.

Angústia vomitada.
Expelida da paz parca e porca.
Da quietude pública.
Da amplitude privada.

Angústia minha e sua.
Suada, estirada, vulgar.
Pilhas de nervos imprestáveis.
Cadenas de ritmos intermináveis.

Angústia catalisada
Por álcool, álcool e amor.
Dilacerada lancinante.
Desacelerada pulsante.

Angústia horizontal.
Vista em cartesiano.
Que pôs cor na minha vida.
Que pôs corna a minha vida.

Barzinho copo sujo.
Ambiente prepúcio.
"Ô cumpadi! Desce mais uma que hoje eu esqueço!"
Copo. três dedos. Mão. Mão. Peso. Queda. Estilhaço.
Há uma poça de cachaça no chão!
Cachaça, cacos e angústia.

Manhã Dela


  "É a minha manhã" pensou ela. Tirara essa manhã fresca e raríssima para dedicar-se aos pequenos prazeres que tinha na vida. Nem levantou-se da cama, dali mesmo abriu as cortinas. Pegou o livro  de cabeceira, que mudava assim que era terminado, e leu mais três capítulos. Era bom. O momento era bom.
  Seu cobertor xadrez, como a maior parte de suas roupas - adorava quando uma cor sobrepunha-se a outra naquela trama quadriculada, extremamente variável - lhe dava uma sensação de segurança e conforto. indescritíveis. Morava sozinha, então forçou-se a levantar da cama e esquentar um pouco de leite na chama do fogão. Preferia o risco de, se se distraísse, ver todo o leite se derramando, pulando da leiterinha herdada de sua avó a esquentar o líquido no seu microondas e não sentir o cheirinho que ele soltava. Para ela tudo no microondas tinha um ar artificial.
  Com o leite quente, o cobertor xadrez e o delicioso clima, supreendeu-se ao ver que o livro simplesmente acabara. Pegou o próximo da fila, uma pilha de livros organizados de acordo o seu interesse e leu mais dois capítulos.
  Fechou-o com dedos delicados e olhou em volta no quarto.  A radiola ainda estava lá. Será que ainda funcionava?
  Cuiosa, ela saiu da cama e ligou o aparelho, tentando sintonizar qualquer rádio que fosse. Chiava, mas "Disprada" era uma música que a lembrava sua infância no interior, a casa na roça com sua avó a cortar verduras, a panela de pressão a apitar. Agora sua vida havia mudado radicalmente nessa cidade grande. Mesmo com a janela aberta, se recusava a ouvir o barulho dos carros, das buzinas, dos pneus lá fora. O único som que se permitia ouvir era a música chiada proveniente da radiola. Sorrindo, tirou um cochilo, desenhou uns rabiscos quaisquer no caderno, espreguiçou-se.
  E em nenhum momento daquela manhã passou pela sua cabeça que o mesmo clima frio que considerava bom poderia ser congelante e desagradável para outras pessoas. É difícil enxergar o sofrimento alheio quando se está feliz. 
  Mas ela não se culpava. Aquela manhã era dela. Depois de um ano tão cansativo, um mês tão dentro da rotina, uma semana tão sem perspectivas, aquela manhã era dela.