Páginas

sábado, 16 de novembro de 2013

Manhã Dela


  "É a minha manhã" pensou ela. Tirara essa manhã fresca e raríssima para dedicar-se aos pequenos prazeres que tinha na vida. Nem levantou-se da cama, dali mesmo abriu as cortinas. Pegou o livro  de cabeceira, que mudava assim que era terminado, e leu mais três capítulos. Era bom. O momento era bom.
  Seu cobertor xadrez, como a maior parte de suas roupas - adorava quando uma cor sobrepunha-se a outra naquela trama quadriculada, extremamente variável - lhe dava uma sensação de segurança e conforto. indescritíveis. Morava sozinha, então forçou-se a levantar da cama e esquentar um pouco de leite na chama do fogão. Preferia o risco de, se se distraísse, ver todo o leite se derramando, pulando da leiterinha herdada de sua avó a esquentar o líquido no seu microondas e não sentir o cheirinho que ele soltava. Para ela tudo no microondas tinha um ar artificial.
  Com o leite quente, o cobertor xadrez e o delicioso clima, supreendeu-se ao ver que o livro simplesmente acabara. Pegou o próximo da fila, uma pilha de livros organizados de acordo o seu interesse e leu mais dois capítulos.
  Fechou-o com dedos delicados e olhou em volta no quarto.  A radiola ainda estava lá. Será que ainda funcionava?
  Cuiosa, ela saiu da cama e ligou o aparelho, tentando sintonizar qualquer rádio que fosse. Chiava, mas "Disprada" era uma música que a lembrava sua infância no interior, a casa na roça com sua avó a cortar verduras, a panela de pressão a apitar. Agora sua vida havia mudado radicalmente nessa cidade grande. Mesmo com a janela aberta, se recusava a ouvir o barulho dos carros, das buzinas, dos pneus lá fora. O único som que se permitia ouvir era a música chiada proveniente da radiola. Sorrindo, tirou um cochilo, desenhou uns rabiscos quaisquer no caderno, espreguiçou-se.
  E em nenhum momento daquela manhã passou pela sua cabeça que o mesmo clima frio que considerava bom poderia ser congelante e desagradável para outras pessoas. É difícil enxergar o sofrimento alheio quando se está feliz. 
  Mas ela não se culpava. Aquela manhã era dela. Depois de um ano tão cansativo, um mês tão dentro da rotina, uma semana tão sem perspectivas, aquela manhã era dela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário