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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Desabar

  Era tão bom que tivéssemos aquele lugar só pra gente. Ele sempre chegava próximo a uma janela qualquer pra acender um cigarro e ficar encostado nos cotovelos, com uma perna cruzada sobre a outra, como só ele sabia fazer. Fiquei deitada observando a silhueta do corpo masculino belo e nu dele. O céu era de um nostálgico cinza lá fora.
  Chamávamos ali de Buraco. Era um dos muitos apartamentos mal cuidados do prédio. A pintura estava descascando, via-se inúmeras rachaduras, o azulejo da cozinha tinha mais peças quebradas espalhadas pelo piso do que pregadas na parede. Boa parte do forro de gesso, antigamente tão belo, estava no chão e a poeira já fazia camadas. Trepadeiras, cujas sementes foram trazidas por pássaros, cresciam ao redor da pia da cozinha e numa das paredes da sala. De mobília, tínhamos apenas a velha e boa cama de molas que já abrigara nossos corpos nus tantas vezes, assim mesmo sem lençol ou travesseiros, uma geladeira quebrada que estava sempre vazia, um fogareiro a gás e uma cadeira antiga de balanço que ele herdara da sua avó.
  Não nos incomodávamos. Era bom estar num lugar que trazia à tona os seus problemas, as suas dificuldades e confusões. O Buraco estava em um dos muitos prédios abandonados naquela área. Era um dos menos pichados, inclusive. ninguém mais se importava com aquele conjunto de prédios, exceto a gente e alguns usuários de crack ocasionais. Mas o vazamento ocorrera há 80 anos e a radiação já não era mais perigosa. Muita coisa ruim aconteceu ali e alguns fantasmas ainda não tinham se desprendido. Sempre pensei que era hora de botar vida ali novamente...
  Mas, como uma maldição, todas as pessoas se esqueceram do lugar, escolheram esquecer. Tinham levado às pressas suas roupas e vidas dali. Seguiram as vidas longe. Exceto eu e ele. Duas crianças que correram e certo dia acharam um lugar. Construíram um castelo de vivências e recordações, um mundo deles. Meio macabro, pitoresco, medonho, mas, no fim das contas, deles. Quando veio a adolescência, nos tocamos e descobrimos, curiosos a anatomia um do outro. Foi bom. Tanto que decidimos carregar aquela cama velha pra lá. O colchão era empoeirado e carcomido, mas nada importava quando estávamos juntos.
  Ele, sempre muito calculista, decidiu certo dia que não queria mais ficar ali comigo apenas. Eu, moça caseira e de desejos simples, nunca entendi o porquê. Mas eu não podia segurá-lo. Tinha que "ganhar o mundo" e ninguém "entraria no meu caminho". Essa era a última vez. O cigarro acabou. O toco foi amassado. Ele pegou o meu vestido, com aquele jeito desinteressado, e jogou-o pra mim. Entendi que era o fim. Nos vestimos, ambos conscientes e saímos do quarto, andando de mãos dadas como tantas outras vezes. Mas essa era diferente. Era o adeus.

4 comentários:

  1. Meu querido amigo meu! Quando eu leio o que você escreve eu sinto como algo tão intimista e aconchegante... que eu poderia ver da minha janela, na minha vida ou enquanto passo na rua,
    como se fosse uma vaga lembrança.

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  2. assumindo sua influência "Buarquiana" com um eu lírico feminino tão verossímil quanto era de se esperar de alguém com tanta sensibilidade. Sou sua fã, nem precisa repetir!

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  3. Estar em sintonia com o mundo a sua volta provoca a enorme inspiração das sutilezas que poeticamente bem delineadas, afaga a alma e desperta o intelecto. É exatamente isto que acontece comigo quando leio o que escreve Gabriel, é mesmo um carinho passado através da sonoridade expressa na culminância montada com as palavras.

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  4. Você ilustrou o meu romance póstumo com Montes Claros. Obrigado.

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