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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Monólogo de um Velho Cansado ou O Sentido

   
   
Sete dias, é o tempo que a senhora vai ficar? Ah, desculpe lhe chamar de senhora, sou mais velho, nem faz sentido mais. Sete dias é bom; em sete dias o mundo foi criado e no sétimo dia Deus descansou. Vai descansar no sétimo dia também? Eu nem sei mais nada... Tanto livro nesse lugar e nem sei. É que, pra ser sincero, não sei ler. Tenho a audácia de dizer isso apesar de ter lido cada um dos livros dessa biblioteca desse asilo, sem contar os que li em toda a vida.
   É que meu analfabetismo não é de palavras escritas. É de algo a mais, algo que nem com palavras pode ser dito. Sou um analfabeto das emoções. Não sabes o quanto eu peno pra compreender algumas coisas.
   Desculpe a bipolaridade; sou assim mesmo. Nestes 89 anos fui assim, não é possível que eu mude daqui pra frente, não é? É que tenho uma alma bagunçada, minha jovem. E sabe o que é pior? Sei que talvez eu já esteja próximo da morte - ela parece mais próxima aqui dessa cadeira de rodas - e ainda não entendi a minha missão nessa vida aqui. Desculpe se você não acredita nisso, mas eu creio que viemos nesse mundo para cumprir alguma missão. 
   Isso me lembrou um dia quente há muito tempo atrás, talvez mais do que eu queria. Foi um dia estranho, minha cara. Eu acordei com um desânimo, com uma nuvem pesando pesada sobre meus ombros. Não sei dizer o que era. Acho que algo espiritual mesmo. Ah, minha filha. Você não acredita nisso também? Tudo bem, não vou discutir. O fato é que o dia correu vagarosamente, eu pensando em morte, eu pensando em como seria mais fácil morrer. Era uma inquietação imprópria, bárbara e muito densa; um rapaz de 19 anos pensando em testamento e em morte. Nesse dia, não lembro qual nem por que, mas uma porta tinha sido fechada na minha vida. Talvez uma das primeiras portas que se fecharam numa longuíssima jornada. A sofreguidão da idade me fez ver aquela porta fechada como todas as portas fechadas e a vontade de correr mundo teve de ser adiada. Hoje digo a você: seria sim muito mais fácil morrer ali. E morrer jovem, para que ninguém se lembrasse de mim como um velho decrépito, como você há de se lembrar. Mas eu não teria vivido os outros 70 anos da minha vida e não teria visto o quanto vi. E seria um desperdício, sabe? Vi coisas horrendas, mas vi coisas magníficas, de amor, de carinho de incondicionalismos.
   E não me arrependo de não ter morrido aquele dia. Mais tarde, no mesmo dia, eu me encontrei com pessoas que me fizeram sentir amado. E tudo passou, todos os desejos perderam o sentido.
   Mas ainda não sei o sentido da minha vinda, da minha vida. Eu te contei muita coisa agora, menina. Não que tenha contado os detalhes, mas contei como foi durante minha estadia aqui. E agora, engraçado, estou me sentindo em paz...
   Creio que está na minha hora. Talvez o sentido da minha vida tenha sido chegar até esse momento e te contar isso. Não sei ao certo o que você está passando, minha linda, mas eu sei que minha história deve ter te ajudado de alguma forma. Agora saia. Me deixe aqui nessa cadeira de rodas com os livros que me fizeram companhia por toda a vida. Não adianta protestar! Não fique, por favor! É o último pedido de um velho no fim da vida. À tarde venha buscar minha casca, creio que não precisarei dela.
  Por que me olha com esses olhos lacrimosos? Todos os que eu amava já se foram. Ficar aqui adiantará no quê? Ah, quer ficar mesmo assim. Tudo bem, incline um pouco mais minha cadeira, por favor. Obrigado. Segure minha mão então e me deixe ir. Não soluce, querida, chore silenciosamente. Estou feliz. 

(...)

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