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terça-feira, 30 de junho de 2015

Confissões à xícara espatifada


  Mas porque, diabos, o café esfria assim desse jeito? É essa xícara idiota. A gente põe o café fervendo e ela vai esfriando. O último gole vem gelado! Além dessa água que junta quando ponho algo frio. Nem eu, que sou gente, suo como essa estúpida. Xícara horrorosa, sem utilidade. Nem manter as coisas quentes consegue. Nem não suar consegue.
  Lanço-a longe. Ela se espatifa na parede, perto da janela. Podia ter atravessado a janela. E atingido alguma cabeça na rua. Uma cabeça de freira, que ia ficar com o véu todo molhado de café. Que graça!
  "E, desde quando eu comecei a me importar com isso?" penso, consternada. Que me valha Nossa Senhora, mas uma xícara de café frio nunca me irritou tanto como hoje. Perdão por ter pensado mal à freira...! Ela não tem culpa, vive só ali, como um passarinho, orando e orando e pedindo a Deus a salvação dos pecados de toda a humanidade.
  Ainda vem aquela megera da Vitória me dizer que estou meio gorda - mas meio gorda é ponto de vista, Vitória - não, não é, querida, existem estudos sobre isso. Índice de Massa Corporal, já ouviu falar? - não, nem quero, porque deveria? - só estou comentando - hum - na verdade, penso que uma dieta não faz mal a ninguém - Cale a boca, Vitória, estou bem com meu corpo - tudo bem, problema seu - meio gorda, meio magra, isso não me define - é, é, isso mesmo.
  As verdades não precisam ser jogadas na cara assim, Vitória, devem ser levemente depositadas num papel anônimo, sob a porta da gente. Daí a gente lê e não fica com raiva de ninguém, como estou de você agora.
  Sabe, acho mesmo é que estou frustrada. Por que não tenho a coordenação motora que me exigem pra tocar o saxofone? Já é a quinta vez que sou advertida. E não sei se é incompetência minha ou crueldade do professor.
  Foi o que escolhi pra vida. Tenho mesmo que continuar, me esforçar. Hoje já sou melhor que mês passado.
  Mas isso não diminui minha frustração. Por que haveria de? Odeio escutar "todos passam por dificuldades". Isso não diminui nem engrandece a minha. Me equipara aos outros, e, assim, somos todos mesmo um bando de condenados, que passamos pela vida vencendo uma dificuldade só pra ter outra. Odeio ouvir "quando acabar, será mais forte". Podia ter como apertar um botão pra voltar, só pra não ter que passar por elas.
  O café está escorrendo na parede branca. Se não limpar agora, vai ficar uma mancha horrível. Quem se importa? O apartamento é alugado mesmo.
  Pousa um pardal na janela. Odeio pardais. Tão comuns. Ele me olha com olhos sentimentais. Fome, há de ser. Pego as migalhas do meu prato e me aproximo da janela. O pardal voa, assustado. Mando-o se foder. Deixo as migalhas no parapeito e sento-me novamente.
  O café escorre. Se bem que... é onde vivo. Não quero uma mancha de café na parede da minha casa. E o pardal... era até bonitinho. Tinha um quê de unicidade. 
  Suspiro, me levanto e vou arrumar um jeito de limpar a bagunça.

(...)

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