Cara Tilde,
Francamente. O
que aconteceu com esses azuis nesse Natal? Essas luzes tão fortes e tão azuis
até me atrapalharam de sentir o clima natalino esse ano. Quem foi que disse que
cor de Natal é azul? O Natal é vermelho! Aconchegante, quente. Ou dourado,
glamoroso, rico, brilhante. Até pra gente que é pobre, faz a gente se sentir
rico. Quem sabe a gente abra uma exceção pras luzes multicor, que são, a seu
modo, charmosinhas.
Mas
azul-boate? De forma alguma, nunca foi. E essa droga de cidade está toda
decorada com essas luzes escrotas.
Essas ruas
confusas... Muita idênticas! Muita casa igual! Será que se esqueceram de tentar
personalizar as coisas? Acho que ninguém tem tempo pra isso nesses dias. Essas
luzes desnecessárias. Esse verão quente... Essa obsolescência programada que
mata qualquer coitado que queira se manter atualizado. A coitada da Cotinha, da
loja, vive juntando dinheiro pra comprar esses celulares novos. Bobagem dela,
tem mais coisa na vida. Crueldade usarem o nascimento de Jesus pra aumentarem
as vendas. Se bem que tem o décimo terceiro, se não aumentassem as vendas, não
iam conseguir pagar a gente. De onde vem todo esse dinheiro que esse povo
arruma no fim do ano? Viagem, Natal, virada de ano, salário, imposto. Eu que
não sei, não tenho isso. Devo o salário do mês que vem...! Olha, sinceramente,
estou mesmo é cansada. Com tanta coisa pra fazer nem vi o fim de ano chegando,
logo eu, que sempre fui inteiramente clima natalino, a vida toda. O que me pesa
nem é isso, é a frustração, sabe.
Digo, o que
fiz nesse ano? Passou e nem sequer percebi! Mudei quem sou? Não. Comecei alguma
faculdade, como disse que começaria? Também não. Nem estudar pra concurso não
estudei. Fiz o meu Ensino Médio muito bem, numa escola boa. Saí pra casar e
quebrei a cara. O que me salva é a leitura. Estou é até hoje presa naquela porcaria
de loja, empregada escrava de ricaços que nem sabem que eu existo. Eles sim!
Eles que devem ter um Natal magnífico, com direito a perus assados e aquelas
frutas charmosas do oriente... Macadâmias, uvas passas, sei-lá-zinhas. É isso
mesmo, não é?
Ainda tive,
nesse fim de ano, a tal Complicação. Os dias que passei internada foram
desgastantes e horríveis...!
Você se lembra
do Natal que a gente distribuiu sopa para os moradores de rua? Aposto que esses
ricaços não sabem o que é isso. Foi bom. Parece que, quanto mais simples, mais
verdadeiro.
O que
aconteceu, hein? Bom, sei que, nesse momento, acabando de escrever esse email
pra você, eu vou me arrumar e arrumar Toninho e sair pra passar Natal com
Gustavo e seus parentes. Ao menos tem Gustavo na minha vida. É um bom
companheiro. Faz tudo pra agradar a gente e eu também faço pra agradar ele. E é
até bonito, acho que demais pra mim. Mas deu na telha dele noivar com uma
mulher como eu, só resta aceitar. Só vou ficar esperta, pois não sofro mais
como sofri com Wanderlei. Dona Vitória, mãe dele, se tornou também a minha mãe
e é muito boa pra mim.
Bruna, da
loja, diz que eu sou recatada demais, fria demais, que minha boceta deve ser
congelada. Disse que eu me tratasse, cuidasse do cabelo, tirasse essas saias
jeans horríveis, que nem sou religiosa e coisa e tal. Que eu devo até ficar
bonita se me arrumar. Disse que eu devo ter feito macumba ou passado café na
calcinha pra amarrar Gustavo. E que desse graças a Deus por ter segurado ele “até
agora”. “Até agora”! que ordinária.
Fica é com inveja. E não tiro a saia jeans, eu gosto!
Toninho se
curou da caxumba. Está um menino forte e esperto. Fez sete anos. Graças a Deus,
ele entende a dificuldade da mãe e não dá muito trabalho. Se dá super bem com
Gustavo e é a única pessoa que ainda me faz sentir o clima natalino. Acho que
ele vai amar o tratorzinho que comprei pra ele.
Sinto sua
falta. Tenho certeza que por aí está tudo bem. Conforta-me saber que, assim que
eu clicar Enviar, esse email vai chegar a sua caixa de entrada. Inquieta-me
saber, que você nunca vai ler. Já se foram dois anos, querida Tilde, e eu ainda
não me acostumei com a ideia de que você acabou debaixo de um ônibus... Nunca
vou me acostumar. Não devia ter ido tão cedo...!
Mas a vida
segue. Um dia melhora, se não piorar.
Atenciosamente, C. L.
(...)